Quaisquer que sejam os ideais
contínuos entre a Antigüidade e a Idade Média, por um lado, e os Tempos
Modernos, por outro, o "secretário florentino" sem dúvida introduziu uma
ruptura decisiva; contra as teorias da sociabilidade natural
aristotélica, contra os ensinamentos da Revelação e os da teologia, ele
afirma - porque constata - que, no que se refere às atividades
coletivas, o que é é o Estado. Foi ele quem deu a esse último termo sua
significação de poder central soberano e capaz de decidir, sem
compartilhar esse poder com ninguém, sobre as questões tanto exteriores
quanto internas de uma coletividade.
O destino do pensamento de Maquiavel,
cinco séculos depois de sua morte, ainda não foi decidido. Lido por
muitos, sua obra tem conhecido tantas interpretações divergentes quanto
são os filósofos e ensaístas que dele se aproximam para analisá-lo.
De um modo geral, os críticos de
Maquiavel até o século XIX se basearam quase exclusivamente no seu livro
mais brilhante, O Príncipe, lendo-o em regra de má fé, citando frases
fora do texto, não levando em conta o ambiente histórico em que surgiu e
deturpando assim seu pensamento pela simplificação ou insuficiente
compreensão de suas idéias. Por outro lado, seus defensores se colocaram
num extremo oposto igualmente inaceitável, apresentando-o como um
cristão convicto, republicano, patriota exaltado e amante da liberdade
que teria pregado o absolutismo como mero expediente político ou
refletindo apenas as imposições do momento histórico.
Para entendermos de fato as idéias de
Maquiavel, é preciso avaliar criticamente toda a sua obra, situando-a
no momento histórico em que a Itália - por suas próprias palavras - "...
estivesse mais escravizada do que os hebreus, mais oprimida do que os
persas, mais desunida que os atenienses, sem chefe, sem ordem, batida,
espoliada, lacerada, invadida ..." (O Príncipe - Cap. XXVI),
examinando-a em sua inteireza e valorizando, de modo particular, ao lado
d’ O Príncipe, a História Florentina, a Arte da Guerra e os Discursos
sobre a Primeira Década de Tito Lívio, livros que se completam, sendo
que os últimos apresentam, com relação aos primeiros, pontos de
aproximação e de contraste, sendo indispensáveis para nos dar uma visão
íntegra do pensamento de Maquiavel, no qual a justificação do
absolutismo coexiste com um manifesto entusiasmo pela república.
A Itália renascentista
Não foi por acaso que o Renascimento
teve início na Itália. Uma economia dinâmica, geradora de excedentes que
pudessem ser investidos na produção dinâmica, geradora de excedentes
que pudessem ser investidos na produção cultural, era condição
fundamental para esse notável movimento. As cidades italianas
monopolizavam o comércio de especiarias com o Oriente, estimulando um
efervescente intercâmbio cultural através dos contatos com as
civilizações bizantina e muçulmana. Veneza, Pisa, Gênova, Florença e
Roma dominavam o Mediterrâneo. Além disso, a cultura clássica foi mais
bem conservada que no restante da Europa ocidental, tendo em vista ser a
Itália o berço da civilização romana.
A burguesia, oriunda das camadas
marginalizadas da sociedade medieval, firmou-se como classe social
através do prestígio que a riqueza lhe trouxe. Procurando moldar a
imagem da sociedade em que ela ocuparia posição central, tornou-se
mecenas, financiando artistas para seu enobrecimento. Transmitiam uma
visão racional, progressista, otimista e opulenta do mundo,
correspondente a sua ideologia.
As cidades-estados italianas tinham
conseguido sua autonomia dos senhores feudais no século XIII. A
concorrência pelo comércio internacional desencadeava lutas entre as
cidades. Para manter seus domínios, cada cidade contratou um chefe
militar, o podestá , encarregado de arregimentar mercenários junto aos
condottieri , mistura de chefes de tropa e empresários militares que
vendiam seus serviços a quem melhor pagasse e que muitas vezes dominavam
os nobres a quem anteriormente haviam alugado suas espadas. O processo
acabou em ditaduras exercidas pelo podestá, pelos condottieri ou
potentados econômicos, criando uma grande instabilidade política e a
fragmentação do território.
Em fins do século XV, encontramos a
Itália dividida da seguinte forma: Ao norte, predominavam as cidades
Repúblicas, centralizadas em algumas cidades; no centro estavam os
Estados Papais; no sul, o Reino de Nápoles estava sob o domínio do rei a
Espanha. As cidades livres ou comunas, como Gênova e Veneza, formavam
estados fortes e independentes. Havia ainda principados do Sacro
Império.
A Itália é, assim, desarmada
política, militar e institucionalmente por causa da intensa rivalidade
entre os Estados italianos, o que facilitou as conquistas estrangeiras.
Tanto a França como a Espanha haviam invadido a península e competiam
entre si a hegemonia da região, visando o monopólio das rotas comerciais
do mediterrâneo. A política temporal do papado que, não sendo
suficientemente forte para reduzir todos ao seu domínio, não é tão fraco
a ponto de impedir a unificação através da figura de um príncipe
secular, acentuando os conflitos internos.
TANTO NOMINI NULLUM PAR ELOGIUM"
("Tão grande nome nenhum elogio alcança")
Nicolau Maquiavel nasceu em 3 de maio
de 1469, filho de Bernardo, advogado pertencente aos ramos mais pobres
da nobreza toscana. Pouco se sabe sobre sua educação e seus primeiros
anos de vida.
Em 1494, quando os Médicis são
expulsos e instala-se o severo regime do monge Savonarola, Maquiavel
inicia-se na vida pública, trabalhando na chancelaria em cargos de pouca
importância. É secretário da segunda chancelaria da república
florentina, depois, em 1498, passa a secretário dos dez de Liberdade e
Bailia. Na funções de secretário dos Dez, recebeu vários encargos para
missões junto ao papa, ao imperador Maximiliano, a César Bórgia, a
Caterina Sforza, condessa de Forlì e ao rei Luís XII. Neste posto se
manteve durante catorze anos, até 1512, quando os Médici retornam ao
poder, retiram-lhe as funções e decretam sua saída de Florença por um
ano. Logo depois, incriminado numa conspiração, foi preso e torturado;
mas nada se apurou contra ele. É confinado em sua propriedade particular
com a família em San Casciano. Ali, pobre e sem os proventos das suas
funções de secretário, começou a escrever O Príncipe. Desse período de
exílio, e dos anos seguintes Discursos sobre a Primeira Década de Tito
Livio e A Mandrágora, obra-prima do teatro italiano. Escreveu ainda A
arte da guerra, em 1520. No mesmo ano retorna a vida pública como
historiador oficial, escrevendo as Historias Florentinas. Teve vários
outros trabalhos menores editados e trabalhos de pequena extensão
(artigos), além de suas cartas. Casou-se em 1501 com Marietta Orsini,
que lhe deu cinco filhos. Faleceu em 21 de junho 1527, pobre, mal
conhecido de seus contemporâneos e desapontado por não ter visto
realizado o seu grande ideal de um estado italiano unificado e soberano.
O pensamento político
O conjunto de idéias de Maquiavel
constituiu um marco que dividiu a história das teorias políticas. Em
Platão (428 - 348 a.C.), Aristóteles (384 - 322 a.C.), Tomás de Aquino
(1225 - 1274) ou Dante (1265 - 1321), o estudo da teoria do estado e da
sociedade vinculava-se à moral e constituía-se como ideais de
organização política e social. O mesmo podemos dizer de Erasmo de
Rotterdam (1465 - 1536) no Manual do Príncipe Cristão, ou Thomas More
(1478 - 1535) na Utopia, que constróem modelos ideais de bom governante
de uma sociedade justa baseados num humanismo abstrato.
Maquiavel não é idealista. É
realista. Propõe estudar a sociedade pela análise da verdade efetiva dos
fatos humanos, sem perder-se em vãs especulações. O objeto de suas
reflexões é a realidade política, pensada em termos de prática humana
concreta. Seu maior interesse é o fenômeno do poder formalizado na
instituição do Estado, procurando compreender como as organizações
políticas se fundam, se desenvolvem, persistem e decaem. Conclui,
através do estudo dos antigos e da intimidade com os poderosos da época,
que os homens são todos egoísta e ambiciosos, só recuando da prática do
mal quando coagidos pela força da lei. Os desejos e as paixões seriam
os mesmos em todas as cidades e em todos os povos. Quem observa os fatos
do passado pode prever o futuro em qualquer república e usar os métodos
aplicados desde a Antigüidade ou, na ausência deles, imaginar novos, de
acordo com a semelhança entre as circunstâncias entre o passado e o
presente.
Em sua obra de maior expressão, O
Príncipe, Maquiavel discorre 26 capítulos de como deve ser e agir o
governante ideal, capaz de garantir a soberania e a unidade de um
Estado. Em seu segundo capítulo, deixa claro que trata de governos
monárquicos - "Não tratarei das repúblicas, pois em outros lugares falei
a respeito delas." (O Príncipe, cap. II) - já que suas idéias sobre as
repúblicas são expostas em Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio.
Para tanto, parte do estudo da
Antigüidade, principalmente da história de Roma, buscando qualidades e
atitudes comuns aos grandes estadistas de todos os tempos. Busca também o
conhecimento dessas qualidades ideais nos grandes potentados de sua
época, como Fernando de Aragão e Luís XIII, e até mesmo o impiedoso
César Bórgia, modelo vivo para a criação de seu ideal de " príncipe" .
O motivo pelo qual Maquiavel tem sido
em geral considerado exclusivamente um defensor do despotismo está em
que O Príncipe foi o livro mais largamente difundido - na verdade muitos
de seus críticos não leram senão este livro - ao passo que os Discursos
nunca chegaram a ser tão conhecidos. Uma vez bem compreendida a
exaltação da monarquia absoluta, pode coexistir com as manifestas
simpatias pela forma de governo republicana.
Ambos os livros tratam do mesmo tema;
as causas da ascensão e declínio dos Estados e os meios que os
estadistas podem - e devem- usar para torná-los permanentes. O príncipe
trata de monarquias ou governos absolutos, ao passo que os Discursos
concentram-se sobre a expansão da República romana.
Ao escrever os Discursos, Maquiavel
pretendia, através da história de Roma (anterior ao império), buscava a
grandeza da republica romana, convencido das excelências do governo
popular sempre que as condições fossem propícias para um regime
republicano. Mostram amor à liberdade republicana antiga e ódio à
tirania.
Já O Príncipe foi escrito devido ao
desejo de Maquiavel de retornar à vida pública, caindo na graça dos
Médicis, que haviam retornado ao poder. Para tanto, tenta demonstrar o
seu valor como conselheiro político através do livro, utilizando sua
cultura e sua experiência para elaborar um "manual", onde buscava saber
qual é a essência dos principados; quantas são as suas formas; como
adquiri-los; como mantê-los e porque eram perdidos. Além disso,
alimentava a convicção de que uma monarquia absoluta constituía como a
única solução possível naquele momento de corrupção e anarquia da vida
italiana, para unificar a Itália e libertá-la do domínio estrangeiro.
A fortuna seria o acaso,
circunstâncias e acontecimentos que independem da vontade das pessoas,
constituindo a metade da vida que não pode ser governada pelo indivíduo e
chave para o êxito da ação política. Segundo Maquiavel, ela é poderosa,
mas não onipotente; deixa uma oportunidade ao livre arbítrio humano, só
exerce seu poder onde não há nenhuma resistência contrária que ela o
demonstra, é quando os homens são covardes e fracos que ela demonstra
sua força "porque a sorte é mulher e, para dominá-la é preciso bater-lhe
e contrariá-la .""(O Príncipe, cap. XXV), sorrindo apenas para os
audaciosos que a abordam com brusquidão.
Em Roma, Virtus, a origem da palavra
virtude, trazia a marca forte da primeira sílaba Vir, que significava
homem. Virtus significa as qualidade do lutador e guerreiro, de um
indivíduo viril. Virtù é a qualidade que se refere, ao mesmo tempo, à
firmeza de caráter, à coragem militar, à habilidade no cálculo, à
capacidade de sedução, à inflexibilidade. Essa imagem do guerreiro viril
que se afirma e faz valer seus direitos, que Maquiavel acreditava ser
necessária à ordem política para sua auto-realização.
Portanto, o homem de virtù é aquele
que sabe o momento exato criado pela fortuna, no qual a ação poderá
funcionar com êxito. É inventor do possível numa situação concreta dada.
Busca na história uma situação semelhante e exemplar, da qual saberia
extrair o conhecimento dos meios para a ação e previsão dos efeitos.
O político de virtù é necessário nos
momentos em que a comunidade se encontra ameaçada por algum grave
perigo, sendo ele isento de culpa pelo uso de meios indiscriminados. a
estabilidade política depende de boas leis e instituições, para não se
tornar tirania. Seu mérito está em dar forma conveniente para a matéria,
que é o povo, institucionalizando a ordem e a coesão social.
Para Maquiavel, o governo
fundamenta-se na incapacidade do indivíduo de defender-se contra a
agressão de outros indivíduos a menos que apoiado pelo poder do estado. A
natureza humana, porém, mostra-se egoísta, agressiva e gananciosa; o
homem quer conservar o que tem e buscar mais ainda. Por isso mesmo, os
homens vivem em conflito e competição, o que pode acarretar uma anarquia
declarada a menos que seja controlada pela força que se esconde atrás
da lei. Assim, o governo para ser bem sucedido, quer uma monarquia ou
república, deve objetivar a segurança das propriedades e da vida, sendo
esses os desejos mais universais da natureza humana. Daí sua observação
que " os homens esquecem mais depressa a morte do pai que a perda do seu
patrimônio" (O Príncipe, cap. XVII). Assim, o essencial numa nação é
que os conflitos originados em seu interior sejam controlados e
regulados pelo Estado.
Em função do modo pelo qual os bens
são compartilhados, as sociedades concretas assumem diferentes formas.
Assim, a forma monárquica não se adapta a povos em que predomine uma
grande igualdade social e econômica, como também não é possível
instaurar uma república onde impere a desigualdade. Considerava a
república como o regime mais propício à realização do bem-comum ("Não o
bem particular mas o bem comum é que dá grandeza ás cidades. E, sem
dúvida, esse bem comum não é respeitado senão nas repúblicas..."- Disc.
L. II, c. II). Entretanto, reconhece que para a Europa do século XVI, a
forma de governo mais adequada era a monarquia absoluta.
As repúblicas apresentariam três
formas: a aristocrática, na qual uma maioria de governados se encontra
diante de uma minoria de governantes, tal como Esparta; a democrática em
sentido restrito, em que uma minoria de governados se acha diante de
uma maioria de governantes, como em Atenas; e a democracia ampla, quando
a coletividade se autogoverna, isto é, o Estado se confunde com o
governo, como em Roma após a instituição dos tribunos da plebe e a
admissão do povo à magistratura.
Maquiavel acreditava que a forma
perfeita de governo republicano é aquele que apresenta características
monárquicas, aristocráticas e populares de forma harmoniosa e
simultânea, ou seja, uma república mista. Observa que uma monarquia
facilmente se torna uma tirania; que a aristocracia degenera em
oligarquia e que o governo popular converte-se em demagogia, formas
corrompidas da república segundo o ideal aristotélico.
Porém, a organização ou reforma de
uma república, da mesma forma que a fundação de um reino, exige um chefe
com poder absoluto, tais como foram Rômulo, Moisés, Licurgo e Solon.
Não se deve buscar indícios que desta forma Maquiavel estaria defendendo
um tirano. Pelo contrário, faz seu ódio à tirania, que não tem como
meta o triunfo do estado, mas o engrandecimento de quem se apoderou do
seu poder.
O fundador ou reformador deve
preocupar-se em ampliar o governo do Estado, entregando a sua direção a
um colégio de homens virtuosos para garantir a estabilidade das
instituições.
No livro "La politica di Machiavelli,
1926" , Francesco Ercole observa que o republicanismo de Maquiavel foi
muito relativo, pois a oportunidade da república está condicionada pela
existência de altas virtudes morais e políticas na coletividade, as
quais possam levar os indivíduos a sacrificar seus fins egoísticos e
particularidades às finalidades comuns do Estado.
O Estado maquiavélico existe na
medida em que não dependa de qualquer vontade estranha, na medida em que
seja soberano. Não aceita nenhuma autoridade externa que imponha
limites à sua ação, nem a existência de grupos internos que pretendam
escapar do seu poder soberano, limitando os desejos individuais de cada
um em favor do interesse geral através das leis.
Em oposição ao pensamento medieval,
Maquiavel desvincula totalmente o Estado da Igreja. Sendo este uma
entidade política secular, dotada de fins próprios, moralmente isolada e
soberana, não poderia estar subordinada a Deus, ao direito natural ou à
Igreja, encontrando sua razão de ser na convicção dos homens de que a
autoridade estatal é indispensável para garantir a segurança individual,
não por "graça" divina.
O Estado existe para proteger cada
indivíduo contra a violência e, ao mesmo tempo, para defender a
coletividade contra ataques que poderão advir de seus inimigos externos;
rodeado como se acha de inimigos, deve o Estado precaver-se,
fortalecendo-se adequadamente, pois sua segurança e sobrevivência
repousam fundamentalmente na força. A capacidade de um estado
defender-se depende também da popularidade do governo, que será tanto
maior quanto maior for o sentimento de segurança que conseguir
transmitir a seus cidadãos.
E como garantir a soberania do
Estado? Primeiramente, deve-se ter a consciência de que a lei reguladora
das relações entres os estados é a luta. Se não molestar os demais,
buscando viver em paz dentro de seu território, fatalmente será
molestado pelos demais pois " É impossível que uma república consiga
permanecer tranqüila e gozar sua liberdade dentro de suas fronteiras:
porque se não molestar as demais, será molestada por elas; e daí lhe
nascerá o desejo e a necessidade de conquistar." (Disc. L. II, cap.
XIX). - Um Estado só é verdadeiramente livre quando possui a capacidade
de garantir sua liberdade. Para tanto, Maquiavel defende um exército
próprio, pois "sem possuir armas próprias, nenhum principado está
seguro" (O Príncipe - cap. XIII), sendo as tropas auxiliares instáveis e
as de mercenários facilmente corrompidas, devendo o exército ser
integrado por seus próprios cidadãos.
Apesar do entusiasmo republicano de
Maquiavel, é preciso atentar para suas limitações. No capítulo LVIII dos
"Discorsi", ele transparece a confiança que depositava nas virtudes do
governo popular, desenvolvendo a idéia de que "a multidão é mais sábia e
constante do que um príncipe", pois ao comparar um príncipe e um povo
subordinado às leis, verifica que o povo mostra qualidades superiores às
do príncipe, porque é mais conforme e constante; se ambos estão livres
de qualquer lei, resulta que os erros do povo são menos numerosos e mais
fáceis de ser reparados do que os do príncipe.
A participação popular no governo é
essencial para manutenção da unidade política , tendo em vista que um
povo dócil ou aterrorizado não encontra forças ou motivação para
defender as causas do Estado como coisa sua, por não se identificar como
parte do Estado, faltando o sentimento de patriotismo tão exaltado por
Maquiavel em toda a sua obra. Mas essa participação popular não deve ser
confundida com a participação popular em um regime democrático.
Maquiavel considerava a maioria do homens desprovidos de virtù. Então,
mesmo que a função de um soberano seja organizar ou reformar uma
sociedade, correspondendo a um momento determinado na trajetória de um
povo, esse mesmo povo precisava ser moldado como argila pelas mãos do
político de virtù, que infunde a sua virtude para construir ou
reconstruir a ordem política.
Muitas vezes é discutida a
imoralidade habilmente usada para concretizar os fins do governante;
porém, Maquiavel não é tanto imoral quanto amoral. Simplesmente abstrai a
política de outras considerações e discorre sobre ela como se fosse um
fim em si mesma. Segundo Lauro Escorel "Não se encontra na obra de
Maquiavel a máxima fartamente popularizada, ‘ os fins justificam os
meios ’ , cunhada , na verdade, durante o período da Contra - Reforma.
Encarando a política como uma técnica, ele só julgava os meios em função
de sua eficiência política, independente de serem bons ou maus."
Encontraremos semelhante afirmação em Carl J. Friedrich:" A verdade é
que a sentença ‘ os fins justificam os meios ’ nem mesmos consta dos
escritos seus, sendo encontrada algumas vezes em traduções, sem,
contudo, existir no texto original. O tradutor tinha tanta certeza de
que era isso que ele queria dizer que traduziu uma sentença que em
italiano quer dizer ‘ toda ação é designada em termos do fim que procura
atingir ’, e a razão para Maquiavel não dizer isso se torna muito
clara. A justificação não é necessária, e tal problema só surge quando
precisamos comparar essa racionalidade em termos da necessidade da
situação com alguma convicção moral, religiosa ou ética. Foi esse
precisamente o problema que Maquiavel eliminou quando disse que a
própria organização, ou seja o Estado, é o valor mais alto e vai além do
qual não existe um limite." Esta foi a grande inovação de maquiavel;
não importa os meios que serão empregados; o Estado nacional soberano
está autorizado a promover a qualquer preço a prosperidade e a grandeza
temporais do grupo humano - a nação, a pátria - por ele representado,
sem que isso trouxesse qualquer condenação ou culpa.
Maquiavel e o maquiavelismo
Se procurarmos nos dicionários de
língua portuguesa, encontraremos o significado da palavra
"maquiavelismo" como: "sistema político baseado na astúcia, exposto pelo
florentino Maquiavel em sua obra O Príncipe; política desprovida de boa
fé; procedimento astucioso; perfídia."
A partir dessa definição, e até mesmo
da formação do substantivo (Maquiavel + ismo ) concluímos que o
maquiavelismo surge de Maquiavel, ou melhor, do seu pensamento político.
É um grande equívoco, que vem persistindo até os dias atuais.
Não é necessário um estudo
aprofundado de sua obra. Basta uma leitura minuciosa do livro O
príncipe, em que Maquiavel descreve os jogos políticos do passado e do
presente, baseado em fatos históricos, principalmente da Antigüidade
Clássica. Mesmo em sua dedicatória, temos elementos que comprovam a
origem de suas considerações: "Desejando eu oferecer a vossa
Magnificência uma testemunho qualquer de minha obrigação, não achei,
entre meus cabedais, coisa que me seja mais cara ou que tanto estime
quanto o conhecimento das ações dos grandes homens apreendido por uma
longa experiência das coisas modernas e uma contínua lição das antigas;
as quais, tendo eu, com grande diligência, longamente cogitado,
examinando-as..."
O maquiavelismo é na verdade a
política corrente entre os poderosos de todos os tempos, surgido no
curso natural da história. Assim, poderemos observar que as grandes
personagens maquiavélicas - Moisés, Ciro, Rômulo, Solon, Licurgo, Teseu,
César Borgia, Luís XII, E outros - são vultos históricos do passado ou
presente que lhe servem de exemplo para as suas considerações, mas não
faz uma leitura crítica da História. A idéia de que a justiça é o
interesse do mais forte, o recurso a meios violentos e cruéis para se
alcançar os objetivos não foram receitas inventadas por Maquiavel, mas
remontam a Antigüidade e caracterizam a sociedade do cinquecento. assim,
podemos dizer que o maquiavelismo antecede a Maquiavel, que é
responsável pela sistematização das práticas de ação dos detentores do
poder, fazendo da prática uma teoria.
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