Um dos escritores de maior repercussão
na literatura universal, Cervantes criou com o Dom Quixote uma das
obras-primas da literatura de todos os tempos: com ela nasceu o romance
moderno e seu herói tornou-se o arquétipo do idealista a qualquer preço.
Miguel de Cervantes Saavedra nasceu em
Alcalá de Henares, provavelmente em 29 de setembro (dia de são Miguel)
de 1547, e sabe-se que foi batizado em 9 de outubro. Estudou em
Valladolid e Madri, serviu a partir de 1569 como soldado na Itália e
participou, em 7 de outubro de 1571, da vitoriosa batalha naval de
Lepanto contra os turcos, em que saiu gravemente ferido. Participando da
expedição contra Túnis, em 1575 foi feito prisioneiro por um corsário
árabe e passou cinco anos no cativeiro, mas recebeu bom tratamento de
seus carcereiros, apesar das quatro tentativas de fuga, e em 1580 foi
resgatado por um religioso trinitário.
De volta à Espanha, teve dificuldade
em adaptar-se. Sua produção literária não obtinha sucesso e, nomeado
coletor de impostos, várias vezes foi preso, em parte por denúncias
falsas ou motivos não explicados. Só em 1605 a publicação do Dom Quixote
aliviou-lhe a situação material. A obra teve sucesso tão grande que um
anônimo, de identidade até hoje não revelada, publicou sob o pseudônimo
de Alonso Fernández Avellaneda uma segunda parte apócrifa do romance. A
partir de então, conseguindo ajuda financeira, Cervantes pôde dedicar-se
exclusivamente à literatura.
Dom Quixote
El ingenioso hidalgo don Quijote de la
Mancha teve seis edições no mesmo ano de sua publicação. Traduzido para
o inglês e o francês, foi amplamente difundido em toda parte, até se
tornar um dos mais lidos romances em todo o mundo, por crianças e
adultos. Para fazer frente à falsa segunda parte lançada por Avellaneda,
Cervantes, espicaçado pela fraude, publicou sua própria segunda parte
em 1615. Já no prólogo da primeira afirmara ser a obra "uma invectiva
contra os livros de cavalaria" que, durante muito tempo, transtornaram a
cabeça das pessoas.
Se é certo esse propósito satírico, ou
se há no livro um retrato irônico e melancólico da Espanha imperial e
guerreira, o fato é que o romance supera de muito quaisquer intenções
primeiras para transformar-se numa grande alegoria da condição e do
destino humano, e do sentido universal da vida. A partir da aventura,
que é o cerne da obra, Cervantes elabora a estrutura do romance num
encadeamento de viagens ou saídas dos personagens, que vão sendo
compostos à medida que se desenvolve a ação.
O idealismo da cavalaria e do realismo
renascentista e picaresco são simbolizados nos dois personagens
centrais. D. Quixote representa o lado espiritual, sublime sob certos
aspectos, e nobre da natureza humana; Sancho Pança, enquanto isso, vive o
aspecto materialista, rude, animal. A par disso, o humanismo e o
significado filosófico conferem maior universalidade à obra, que é vista
como símbolo da dualidade do ser humano, voltado para o céu e preso à
terra.
Esse dualismo, muito bem ressaltado
pela ideologia barroca dominante na época de Cervantes, foi muito bem
assimilado por ele. É um motivo de natureza universal, particularizado
em cada criatura, que o mestre procura disfarçar sob a forma de aventura
cavalheiresca, inserida num mundo de fantasia: de um lado, o amor do
honesto e do ideal; do outro, o do útil e do prático, dois princípios de
vida que se dão as mãos no cavaleiro e no escudeiro.
Situado entre os mundos renascentista e
barroco, os elementos característicos de ambos se juntam nele, com
predomínio do barroco. A crítica salientou a unidade da composição,
típica do barroquismo, em que o grande número de episódios não desfrutam
de existência autônoma, mas vivem interligados num bloco geral. Também
são traços peculiarmente barrocos a disposição dos personagens em
profundidade, a antítese - no plano geral, na forma, nos enlaces
abstrato-concretos - , os tipos de metáfora, o paradoxo, a hipérbole, a
alusão, o jogo de palavras, o encadeamento dos componentes da frase, a
série assindética, o próprio dinamismo do estilo.
Por esses e outros dados da atitude
barroca, o autor apóia-se em contrastes que tornam o livro cuerdo y loco
(prudente e louco) e o situam entre a pregação moral e o realismo
picaresco, na chamada "ordem desordenada" própria dessa tendência. Como
ficou claro para os estudiosos, o traçado do romance obedece a um plano
rigoroso, em que as várias excursões do cavaleiro se compõem em
movimentos circulares, com os quais expressa a noção barroca do destino e
a preocupação com o mundo, em que acaba por descobrir o vazio e a
inanidade, a desilusão e o desengano, resultados muito distintos das
peregrinações medievais e góticas, em linha reta, em direção a Deus ou à
sepultura.
Exatamente por isso, o modo como o
escritor soube resolver a tensão narrativa entre o real e o imaginário é
uma de suas contribuições essenciais. O extraordinário é que, em sua
recriação do plano ficcional, ele mantém as dimensões, as proporções,
uma animação e uma estrutura de universo real. Reencontra-se o homem,
estabelece-se sua moral, reconstitui-se sua verdade. O mundo, à primeira
vista fantástico, é iluminado por uma virtude concreta, a caridade, ou
antes, o amor do homem pelas coisas, pelos bichos, pela natureza e pelo
próprio homem, redescoberto em sua dignidade primordial.
A primazia desse aspecto afetivo
traduz-se numa ética de bondade, que se manifesta, em seu mais alto
grau, nas relações entre D. Quixote e Sancho Pança, o cavaleiro e o
escudeiro, o senhor e seu amigo, duas figuras contrastantes e ligadas
por uma fraternidade de quase cerimoniosa cortesia, pela qual se prezam e
se respeitam. É impossível deixar de reconhecer nesse encontro, em suas
conversas e decisões, uma das imagens mais significativas da história
do relacionamento humano.
Além da bondade, há em toda a
narrativa uma profunda valorização da liberdade e da justiça. No caso da
primeira, um dos melhores exemplos é a passagem em que Cervantes
descreve a existência dos ciganos, integrados à natureza e à
espontaneidade do amor. Houve, porém, quem preferisse ver a história
como relato do fracasso trágico de um idealismo mal informado, assim
como fracassaram na realidade as altas intenções da Espanha
monárquico-católica e as do próprio Cervantes, que no início de sua vida
pretendeu tornar-se soldado heróico e acabou como humilde funcionário
público, na prisão e na rotina do trabalho literário.
A primeira tradução do D. Quijote para
a língua portuguesa foi impressa em Lisboa em 1794. Seguiram-se várias
outras, entre as quais a de Antônio Feliciano de Castilho, que apareceu
de 1876 a 1878 no Porto, ilustrada com desenhos do francês Gustave Doré.
Essa mesma versão foi retomada em 1933 pela Livraria Lello & Irmão,
em dois grandes volumes, e difundida em edição mais simples tanto em
Portugal como no Brasil. No Brasil foi publicada na década de 1980 a
tradução feita por Almir de Andrade e Milton Amado.
Poesia e teatro
A poesia de Cervantes não tem as
mesmas qualidades de sua prosa de ficção, embora o próprio autor
apreciasse muito seu soneto sobre o túmulo de Filipe II. Tampouco
interessa hoje o poema didático Viaje al Parnaso (1614), espécie de
panorama crítico da literatura espanhola de sua época. De pouco valor é
também o romance pastoril La Galatea (1585).
Dramaturgo de inspiração variada e
muitos recursos, Cervantes não teve, porém, grande êxito no teatro
porque foi eclipsado por Lope de Vega. Sua produção teatral está reunida
no volume Ocho comedias y ocho entremeses (1615; Oito comédias e oito
entremezes). A mais conhecida de suas peças é a tragédia
histórico-patriótica Numancia, obra pseudoclássica. As comédias, com
poucas exceções, são fracas. Muito melhores são os entremezes, pequenas
peças humorísticas, de um realismo tipicamente espanhol.
Novelas exemplares
Não é justo explicar a glória
literária de Cervantes exclusivamente pelo D. Quijote. Se não tivesse
escrito esse grande romance, estaria imortalizado como autor de Novelas
ejemplares (1613; Novelas exemplares), um dos mais importantes volumes
de contos da literatura universal. O adjetivo ejemplar refere-se à
intenção moral de Cervantes ao escrever essas pequenas obras-primas,
intenção que nem sempre é evidente, porque constam do volume três séries
de novelas muito diferentes. Novelas idealistas, de aventuras e
acidentes perigosos que acabam bem são "El amante liberal", "La española
inglesa", "Señora Cornelia" e sobretudo a magistral "La fuerza del
sangre" ("A força do sangue").
Ideal-realistas são "La ilustre
fregona" ("A criada ilustre") e "La gitanilla" ("A ciganinha"). O
realismo de Cervantes triunfa em "El casamiento engañoso", em "El celoso
extremeño" ("O estremenho ciumento"), na novela picaresca "Rinconete y
Cortadillo" e no "Licenciado Vidriera", cujo personagem principal
antecipa o D. Quixote, e sobretudo no "Coloquio de los perros" ("Diálogo
dos cães"), verdadeiro testamento da melancólica sabedoria de vida de
Cervantes.
Persiles
O próprio Cervantes parece nunca ter
esquecido o desastre de suas esperanças idealistas. Embora critique
humoristicamente (no "Coloquio de los perros") a falsidade do gênero
pastoril, sempre pensou em escrever uma segunda parte de La Galatea, e
incluiu ainda no Don Quijote um episódio pastoril, a história de
Marcela. Tampouco parece ter sido intransigente a aversão de Cervantes
ao romance de cavalaria, pois pertence a esse gênero sua última obra,
Los trabajos de Persiles y Segismunda. O enredo complicado dessa
história de aventuras, narrada em estilo retórico e altamente romântico,
torna hoje difícil sua leitura, em que Azorín descobriu uma qualidade
especial de angústia.
Cervantes morreu em Madri em 23 de
abril de 1616. Poucos dias antes de sua morte escreveu o prefácio de
Persiles (publicado postumamente em 1617), em que cita os velhos versos:
"Puesto ya el estribo, / Con las ansias de la muerte."
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